Eterno. Bugatti Type 35 faz 100 anos

Apresentado em 1924, o Bugatti Type R garantiu mais de 2500 vitórias na competição e, um século depois, ainda é admirado pela inovação tecnológica. Homenageamo-lo nestas linhas.

Leve, potente, ágil e elegante, o Bugatti Type 35 faz parte do grupo reservado dos melhores automóveis do mundo. Não se pode comparar o passado com o presente nem perspetivar o futuro com bases estatísticas, mas poucos veículos de competição podem apresentar um currículo com cerca de 2500 vitórias em meia dúzia de anos de vida (1924/1930), sobretudo num tempo em que o mundo não era global e a estatística era uma curiosidade. Eram outros tempos.

Tempos em que cada construtor procurava novos caminhos, com base numa criatividade empírica como Ettore Bugatti. É por isso que, para perceber o caminho que levou até ao Type 35, seja fundamental conhecer o seu criador: Ettore Arco Isidoro Bugatti (1881 Milão, Itália/1947 Neuilly-sur-Seine, França), “Le Patron” (o patrão) como era conhecido na fábrica que criou em Molsheim. Tinha um feitio difícil (dizem) – é normal neste mundo. Filho de um arquiteto, irmão do designer Rembrandt Bugatti, que criou o elefante topo de grelha dos Bugatti, e pai de Jean Bugatti, que prosseguiu o seu trabalho inovador com os impressionantes Bugatti Royale.

Autodidata

Ettore Bugatti tinha uma formação mais próxima das artes (Academia Brera, em Milão) do que da tecnologia, mas foi a mecânica que o cativou. E, se dúvidas houvesse, o primeiro prémio no Salão Automóvel de Turim de 1899 mostra a sua genialidade autodidata, que levou a empresa De Dietrich (1896/1935) a contratá-lo como projetista. Só tinha 18 anos de idade e o contrato foi assinado pelo pai. Foi um passo no caminho para a criação da Bugatti em 1909. Um ano depois apresentou o Type 13 no Salão Automóvel de Paris, mas a I Guerra Mundial interrompeu um sonho que parecia destinado ao sucesso. Com a Europa debaixo de fogo, a engenharia progrediu rapidamente e a Bugatti associou-se à Messier para produzir motores de avião para os Aliados.

Com o final do conflito, em 1919 Bugatti retomou a produção do Type 13 em Molsheim e, graças à qualidade dos seus chassis e motores, conquistou uma clientela desportiva. Os êxitos afirmaram o prestígio da marca, que viria a atingir o pináculo da fama com o Type 35, projetado para o Grand Prix do Automóvel Clube de França, que se disputou em 1924 na cidade de Lyon.

“O Type 35 é um dos ícones da história do automóvel. Em 1924 era superinovador em termos técnicos, design e potência e um século depois continua a ser uma fonte de inspiração”, como admitiu Stephan Winkelmann, o presidente da Bugatti, que hoje faz parte do Grupo VW. “O Type 35 é um antepassado dos nossos superdesportivos Chiron, Chiron Sport e Divo”, sublinhou.

Há quem ache que se Ettore Bugatti tivesse recebido uma formação em engenharia automóvel tradicional nunca teria produzido o Type 35, que superou os padrões convencionais da época e o design, apostando na inovação de uma forma que nunca tinha tido paralelo.

Carro de corrida

“O Bugatti Type 35 foi o primeiro automóvel do mundo pensado no seu design e na sua engenharia para ser utilizado em pista. Contrariamente a tudo o que o mundo automóvel conhecia antes, e mesmo quando chegou a ser utilizado como automóvel de turismo, nunca foi simplesmente um veículo de estrada desenvolvido para a competição”, considera Luigi Galli, especialista em património e certificação da Bugatti.

“A abordagem meticulosa de Ettore Bugatti na conceção global do projeto e a atenção dedicada a todos os detalhes redefiniram o desporto automóvel em termos de design e tecnologia, nos materiais, na maneabilidade e nas performances. O Bugatti Type 35 deu origem à era dos carros de Gran Prix e obrigou os outros construtores a rever totalmente as suas estratégias”.

Pode dizer-se que nada foi esquecido, a começar pela comunicação, que na época não tinha o peso que hoje lhe atribuímos. Mas foi com o Type 35 que a Bugatti assumiu de maneira clara e ainda mais vincada a imagem do radiador em forma de ferradura, que ainda hoje é a sua imagem de marca e ao mesmo tempo a assinatura “Le Pure Sang des Automobiles” (O Puro Sangue dos Automóveis), que começou a surgir na sua publicidade nos finais de 1923, associando as corridas nos hipódromos, com as competições que iam nascendo em toda a Europa, em locais que hoje até podemos considerar bizarros. Sabia que nos anos 20 houve corridas com modelos da Bugatti num circuito no Campo Grande em Lisboa?

Chassis

Ettore Bugatti foi dos primeiros a perceber que, mesmo com um motor muito potente, um veículo pesado tinha dificuldade em garantir grandes resultados e, em contracorrente, criou um modelo assente numa estrutura ligeira e com uma altura ao solo menor do que era habitual na década de 20, garantindo um comportamento dinâmico muito melhor do que qualquer dos veículos da concorrência. Os detalhes, que fizeram a diferença há um século, continuam a ser determinantes hoje em dia. A relação peso/potência era fácil de intuir, mas a aerodinâmica era incipiente, o que valoriza a opção do desenho da carroçaria em forma de gota de água, poderia ter nascido hoje num sofisticado túnel de vento, onde seriam apurados detalhes como o pequeno vidro que protegia a cara do piloto, esquecendo o mecânico, que fazia parte da equipa destes bilugares. Pode ser um pormenor, mas detalhes como a forma de um retrovisor obrigam a horas de túnel de vento na F1 dos nossos dias.

O mesmo se pode dizer da suspensão. O eixo dianteiro ligeiro oco e a configuração do posterior que, face aos tradicionais, em vez de ser aprumado era curvo para acompanhar o desenho da carroçaria, era tão eficaz no amortecimento como no campo aerodinâmico, deixando fluir o ar. Se a suspensão potenciava o comportamento dinâmico, as jantes em liga com oito raios – outra novidade – foram pensadas para minorar o efeito das massas suspensas nos eixos e melhorar o desempenho das suspensões, mostrando ser ainda mais eficazes do que as jantes de raios, que em casos de furo, permitiam que o pneu saísse da jante. Integravam os tambores dos travões, acionados por cabos Bowden e permitiam verificar o estado das “pastilhas” nas paragens para troca de pneus nos reabastecimentos das corridas mais longas.

Motor notável

Tão ou mais inovador do que qualquer solução proposta no chassis que potenciou a relação peso/potência em valores pouco comuns para a época, surge um grande/pequeno motor, que faz do Type 35 uma proeza tecnológica. Grande por ser um oito cilindros em linha, formado por dois blocos de quatro cilindros em alumínio, mas “pequeno” pelos seus 2.0 litros de cilindrada e inovador pelas opções. O Type 35 tem de ser considerado como uma proeza tecnológica. Ettore Bugatti apostou pela primeira vez num duplo rolamento de agulhas e o triplo rolamento de esferas na cambota, que continua a ser considerada uma peça de arte da engenharia. O regime do motor podia chegar às 6000 rpm, o que garantia a superioridade do Type 35 face à concorrência. Chegava facilmente aos 184 km/h com o motor 1991 cc, com mais de 90 cv alimentado por dois carburadores Solex ou Zenith. A distribuição era assegurada por uma árvore de cames que acionava três válvulas (duas de admissão e uma de escape). Tinha acoplada uma caixa de quatro velocidades, não sincronizadas.

O Type 35 tinha tudo para ser um ganhador, mas a sua estreia no Gran Prix de France de 1924 foi uma deceção para os cinco modelos que alinharam à partida. Depois de terem feito furor nos testes, ficaram pelo caminho na corrida, mas a culpa foi dos pneus, mal vulcanizados, que não resistiram à velocidade do veículo. O segundo lugar no Gran Prix de San Sebastien acabou por ser uma pequena consolação para um modelo que começou a somar triunfos e a ser declinado em várias versões.

Em 1925 surgiu o Type 35A denominado “Course Imitation 35A” (competição imitação 35A). O chassis, os eixos e a caixa de velocidades eram semelhantes e a mecânica foi simplificada. As performances eram naturalmente inferiores e o preço mais baixo. No motor, a cambota só tinha rolamentos de agulhas e o regime estava limitado às 4000 rpm, as válvulas eram de menor dimensão e a ignição por distribuidor e não por magneto. Mesmo assim garantia 75 cv de potência e podia chegar aos 173 km/h. O Type 35A ganhou a alcunha de “Tecla”, nome de um joalheiro francês produtor de jóias de imitação. Custava cerca de dois terços do preço do verdadeiro Type 35 e muitos dos modelos contavam com jantes de raios, já que as de liga eram uma opção mais cara.

Nos anos seguintes surgiram novas propostas mais performantes do que o Type 35 para vincar a posição da Bugatti na competição ou para responder a alterações nos regulamentos. Temos assim o Type 35C, o Type 35B e os Type 39. Em 1926 a cilindrada chegou aos 2262 cc do Type 35T com 120 cv.

Falsificações

Os Bugatti são cobiçados pelos colecionadores e disputados por milhões em leilões em todo o mundo. Mas atenção: segundo o saudoso João Lacerda, mentor do museu automóvel do Caramulo, foram produzidas 40 unidades do Type 35B (um dos modelos faz parte do espólio do museu) entre 1927 e 1930, mas estão inventariados 48, o que equivale a dizer que nem todos são autênticos e há histórias complicadas que podem ajudar a explicar a situação.

Competiram em Portugal diversas variantes do Type 35 como o Type 51, igual ao Type 35B, mas com duas árvores de cames à cabeça, que foi utilizado por Ribeiro Ferreira (que o comprou) e Casimiro de Oliveira (irmão do cineasta António Oliveira). Investigações do engenheiro belga Jacques Touzet e do dr. João Lacerda concluíram que esse carro foi desmantelado em 1943 num sucateiro do Norte. Desapareceu o chassis, mas alguém “salvou” o número de chassis e do motor. Era prática corrente. Este “novo” Bugatti Type 51C surgiu num leilão nos EUA e foi arrematado por Uwe Hucke, um dos maiores colecionadores Bugatti da Europa. Mas os documentos apresentados por Jacques Touzet e João Lacerda mostraram que estávamos perante uma fraude. O comprador foi avisado e “o homem ia tendo uma síncope”, como refere João Lacerda num dos seus escritos. Mais tarde este modelo surgiu num leilão da Coys. A leiloeira foi notificada e o modelo foi leiloado com a referência “não podemos garantir a sua autenticidade”. É um mero exemplo do perigo inerente dos menos avisados que apenas olham para as relíquias do passado como forma de investimento.

Type 35B do Caramulo

Henrique Lehrfeld comprou na Rothschild em Paris um Type 35C em maio de 1929 e no ano seguinte (julho de 1930) adquiriu na fábrica um Type 35B (chassis 4952 e motor 209 TC). Depois da vitória a 4 de agosto de 1930 no “Quilómetro de Arranque de Setúbal”, onde ganhou o primeiro prémio, somaram-se êxitos em Portugal e a vitória no Circuito de Vila Real de 1934, emprestado a D. António Herédia e o segundo lugar no Circuito da Gávea (Rio de Janeiro em 1935).

Em 1956 foi adquirido pelo dr. João Lacerda e reconstruído pelos engenheiros José Jorge Canelas e Tomaz Branquinho da Fonseca, passando a integrar o acervo do Museu Automóvel do Caramulo. Entre os 40 Type 35B nunca foi dos modelos mais utilizados em competição. Por isso é considerado um dos mais originais do mundo e uma pérola da coleção do Museu Automóvel do Caramulo.