60 anos de Ford Mustang

O Mustang é um ícone americano e alimentou a paixão dos “petrol heads” mais radicais no virar do século, e não só. Hoje tem uma proposta 100% elétrica que mostra que o mundo alterou os seus paradigmas com as novas gerações...

Os anos 60 do século passado foram disruptivos. O mundo mudou e as fronteiras foram ultrapassadas ao som da “Beatlemania” que cruzou o Atlântico e chegou aos Estados Unidos (EUA). O ritmo de Liverpool conquistou a América e o “Billboard” dos singles de 1964 aponta “I want to hold your Hand” dos Beatles no primeiro lugar. Mas logo a seguir surgia o tema “old School” de Louis Armstrong – “Hello Dolly”, o que mostra um equilíbrio entre o passado e o presente, num universo que procurava novos caminhos tão originais como o ritmo dos “The Beach Boys”, com músicas como “I Get Around”.

A segunda geração dos que tinham participado na II Guerra Mundial e na guerra da Coreia estava a ser recrutada para o Vietname, um conflito que não tinha chegado aos níveis que acabou por assumir e quando se viviam ainda tempos de prosperidade nos EUA.

Foi neste cenário que a Ford apresentou o Mustang durante o "New York World´s Fair" realizado em Flushing Meadows, Queens, Nova Iorque, em 1964. John Najjar é apontado como o responsável pelo nome, inspirado no avião P-51 Mustang, marcante na II Guerra Mundial (sobretudo na guerra do Pacífico) e que identifica uma raça de cavalos dos EUA, mas são meros pormenores...

ESTREIA EM GRANDE

Henry Ford II, Lee Iacocca (o responsável pelo projeto) e toda a equipa marcaram presença no evento que decorreu em simultâneo com a apresentação do modelo em todos os concessionários da marca. Foram vendidas 22 mil unidades de imediato. Era uma proposta à medida da juventude americana, farta de automóveis enormes e pesadões.

Lee Iacocca sabia que era tão importante criar algo de inédito como produzir um modelo rentável em termos económicos, traduzido em milhares de unidades e por isso a fórmula acabou por responder a estes quesitos: original e apelativo no design. Foi assim que nasceu um coupé de dois lugares com um preço “justo” e, para cumprir o caderno de encargos, houve uma aposta forte na imagem, sem extravagâncias ao nível mecânico, que apostou numa evolução do familiar Falcon.

A motorização foi o “head line” do lançamento: um bloco de seis cilindros em linha de 2.8 litros ou um imponente V8 de 4,3 ou 4,7 litros numa carroçaria coupé ou cabrio, com hard-top. O fastback (também conhecido como sportsroof) com um aspeto mais dinâmico só surgiu mais tarde. A personalização foi uma proposta inicial – tantos cromados quantos o cliente queria – e muitos opcionais disponíveis num modelo que teve a concorrência do Plymouth Barracuda de que hoje ninguém se lembra que existiu, apesar de ter sido apresentado umas semanas antes do Mustang.

MARKETING EFICAZ

O segredo do sucesso passou pela massiva campanha de marketing, que garantiu espaço publicitário nos três maiores canais da televisão e fez capa em revistas como a Time e Newsweek. Foram vendidas 400 mil unidades do Mustang no primeiro ano de comercialização. O modelo deu origem à designação "pony car" nos EUA e ainda hoje é um ícone da indústria automóvel americana; mais tarde está na origem do nome “muscle car”, graças a versões especiais que foram sendo cada vez mais potentes como os “Boss”, “Shelby” ou os “California Special”.

O sucesso do Mustang atravessou o Atlântico e rapidamente passou a ser visto na Europa como o automóvel americano mais cobiçado da época. A afirmação voltou a passar pelo marketing, especialmente em França, onde a Ford inscreveu um modelo no Rali de Monte Carlo para o então famoso cantor gaulês Johnny Hallyday, para além de o promover no cinema em filmes de Claude Lelouch e Jean Girault (com Louis de Funés) antes de um cabrio contracenar pela primeira vez com o Aston Martin DB5 no filme “Goldfinger” de 007.

Outras voltaram a acontecer. Mas o filme de maior impacto com o Ford Mustang foi “Bullitt” com Steve McQueen, estreado em 1968, uma película à medida de quem gosta de automóveis.

A Ford Motor Co. vivia anos de prosperidade e optou por uma grande aposta no desporto automóvel. Basta recordar que o primeiro GT40, que veio a dominar as 24 Horas de Le Mans entre 1966 e 1969, surgiu em 1964 como reação de Henry Ford à recusa da venda aos americanos da marca de Maranello. No final do ano foi apresentado o Mustang de 1965, que hoje os colecionadores referem como 64 ½. As alterações passam pela adoção de um alternador em vez do dínamo, novos faróis de nevoeiro, discos de travão à frente, um novo painel de instrumentos e uma versão GT.

CONCORRÊNCIA GM

A evolução continuou e em 1966, quer ao nível da carroçaria quer dos motores, as vendas continuavam em bom ritmo (mais de 607 mil unidades) apesar de pequenos contratempos como a tentativa inicial de vender o modelo na Alemanha, impossibilitada por uma empresa local, que tinha patenteado a palavra Mustang e exigia dez mil dólares para ceder os direitos. A Ford recusou, retirou todos os emblemas do Mustang e vendeu o carro como a referência “T-5”.

A General Motors, atenta a este sucesso, apresentou em 1966 uma alternativa que batizou de Camaro e a marca de Dearborn teve de reagir.

Poderia pensar-se que a concorrência podia dilatar as vendas neste segmento, mas foi o contrário e o Mustang vendia metade do que havia vendido em 1966. Eram sinais de mudança. No lado da Ford, embalada pelos sucessos em Le Mans, não foram apresentadas alterações profundas de imagem às versões de 1967, mas assumiram um carácter mais musculado e a carroçaria foi alterada para conseguir receber um motor 6.4 V8 de 340 cv capaz de competir com o “big block” de 6,5 litros da Chevrolet. O Mustang ganhou potência, apesar da limitação das retomadas de aceleração pelos 100 kg de peso a mais face ao bloco de 4,7 litros, mas a Ford não aumentou o preço. Paralelamente, Carroll Shelby criou uma gama de propostas musculadas com base nos modelos da Ford: GT350, GT500 (desde 1967) com o motor 7.0 V8 de 355 cv e em 1968 surgiu o 428 Cobra Jet e o GT500 com um motor denominado KR (“King Road”).

O “MUSCLE CAR”

A crise petrolífera global era uma ameaça, mas a Ford Motor Co. seguiu em frente. O ano de 1969 foi de transição entre o “pony car” e o “muscle car”, numa corrida às performances. Foram os tempos de Semon Knudsen, que delegou o design em Larry Shinoda e a motorização à equipa de Kar Kraft, onde se destacou Hank Lenox, que realizaram propostas contraciclo face à realidade, ao preço e à escassez dos combustíveis. Aberrações como o Boss 429, que obrigou à montagem de uma bateria na bagageira para poder acolher um motor V8 de 4.0 litros com 375 cv e 664 Nm de binário às 3300 rpm, capaz de chegar aos 206 km/h e passar de 0 a 100 km/h em 6,8 segundos, é um bom exemplo e mostra que se tinha entrado no campo dos “muscle cars”.

Na opção “mais civilizada” – o Boss 302, com um motor 4.9 V8 –anunciava 290 cv de potência, apesar de oferecer cerca de 350 cv, uma decisão para reduzir os custos dos seguros que na época penalizavam gravemente os desportivos. A primeira geração do Mustang sobreviveu até ao início dos anos 70, mas as alterações no design estavam longe de ser suficientes para manter vivo o seu apelo icónico.

SEGUNDA GERAÇÃO

Quem gosta de automóveis em geral e dos americanos em particular, conhece a velha fórmula de Henry Ford: “Mais do que muita cilindrada, ainda mais cilindrada”. Mas esta ideia estava fora de contexto em 1974, quando surge a segunda geração do Ford Mustang ou, melhor dizendo, a adulteração do conceito. A nova proposta nasceu da evolução do Ford Pinto americano e do Ford Capri europeu. Voltou a ser um “pony car” como o original, mas não tinha qualquer tipo de apelo para os “petrol-heads”, mesmo nas versões mais musculadas com motores V8 de 4.9 litros. A imagem não tinha qualquer caráter que pudesse ser associado ao ícone de 1964 e talvez por isso só tenha sido produzido entre 1974 e 1978. A situação era dramática. Para se ter uma ideia, em 1974 tinham sido vendidas
353 993 unidades das versões do Mustang (coupé, Ghia, hatch Back e Mach 1), mas em 1978 as vendas ficaram-se por 192 410 unidades. Os alarmes estavam a soar em Dearborn, numa altura em que a Ford Motor Co. procurava novos rumos apostando na globalização, mas esquecendo que por muito apelativo que fosse o charme da indústria automóvel europeia, o (seu) mercado americano tinha outras prioridades e exigências.

GERAÇÃO (AUDI) FOX

Mas os EUA foram atrás da Europa e em 1978, quando foi apresentada a segunda geração Mustang, o ícone americano estava em risco de sobrevivência. O seu nome era mediático, mas o sucesso comercial apontava para o desastre e cada opção da Ford Motor Co. parecia ser um erro maior do que o anterior, querendo que o modelo se afirmasse globalmente, sem o conseguir tornar apelativo no mercado interno, onde já havia sido a imagem o “american way of life”.

A terceira geração, apresentada em 1978, foi mais um passo para o abismo. O novo modelo foi realizado à imagem do design europeu. As linhas angulosas eram modernas à medida europeia e a volumetria da carroçaria (à antiga) permitiu um habitáculo cómodo e espaçoso, mas a geração Mustang (1979-1983) ficou conhecida como Fox, por ter sido realizado na ideia da plataforma utilizada pelo Audi 80 (Fox), comercializado nos EUA pela marca de Ingolstadt. O novo Mustang tinha tudo para agradar, salvo a assunção da sua tradição dinâmica e os americanos não gostaram, apesar das propostas musculadas por “big blocks” V8, muitos motores “explosivos” e propostas mais ou menos radicais sem expressão fora dos EUA.

Foi um percurso até 1994 e a chegada a um momento em que a Ford Motor Co. decidiu reencontrar-se com a sua herança. O Ford Mustang IV foi apresentado em 1994. Foi uma rotura com tudo o que tinha a ver com os anos anteriores, mas ainda apostava numa modernidade de design e num estilo euro/americano, que lhe roubou o caráter “yankee” que fizera o sucesso das propostas originais. Mas ficou próximo... A Ford propôs o Mustang de 1994 com duas carroçarias – um coupé que evoca o velho “fastback” e um cabrio 2+2 – para além de motores V6 e V8.

Em 2005 foi o regresso ao passado. O novo Mustang surgiu como uma proposta retro e simultaneamente original, assumindo o seu carácter original com duas propostas base: um V6 de 210 cv e um V8 de 300 cv, que foram complementadas com a opção Shelby GT500 com um V8 de 500 cv, apresentado em 2007. Mas o filme “Bullitt” com Steve McQueen fez reviver o passado, com um modelo de 2008/2009. Em 2011 o Mustang Boss 302 anunciava um motor V8 de 405 cv.

A VI GERAÇÃO

Em 2014 foi apresentada a 6ª geração do Mustang e pela primeira vez anunciada uma aposta no mercado europeu, sempre negligenciado até essa altura. Os modelos, produzidos na fábrica de Flat Rock, no estado do Michigan, propunham um bloco quatro cilindros 2.3 Ecoboost de 317 cv, para além de um V8 menos apetecível na Europa. O novo/velho Mustang tornou-se num “best seller”. O seu sucesso comercial fez com que viesse a ser apontado como o“coupé desportivo” mais vendido no mundo. Algo notável para um veterano sobrevivente de uma geração com 50 anos de vida.

A década seguinte passou a correr, com propostas radicais como o Shelby GT350 equipada com um V8 de 520 cv de 2017, o GT500, outro Shelby com um V8 de 760 cv, mas também com inovações como o Mustang Mach-E mostrado em 2019, um SUV 100% elétrico, que para muitos foi uma heresia por ostentar o nome Mustang.

Foi um caminho para a 7ª geração de um modelo que manteve, por um lado, a herança do passado com propostas animadas por grandes motores a gasolina, mas também criou uma nova família de modelos 100% elétricos. Utilizar a denominação Mustang para a nova geração elétrica gerou muita controvérsia no interior e fora da companhia. Mas ela foi assumida e hoje os clientes da Ford podem optar por um Mustang V8 politicamente incorreto, ou um elétrico Mach-E politicamente correto. Cada um sabe de si...