O motor do mundo

D esde 2009 que a China se tornou o maior mercado automóvel do planeta e hoje com uma margem confortável para o número 2, os EUA, (22,7 contra 17 milhões de novas matrículas por ano), mas só agora começa a surgir um reconhecimento internacional que vai muito além do que diz a frieza dos números.

Até muito recentemente, quando voltava de uma das principais feiras internacionais em Xangai ou Pequim (que alternam anualmente) vinha impressionado com o tamanho do mercado, com os novos lançamentos e novas marcas que brotavam como cogumelos, mas não conseguia evitar a incredulidade gerada pelos questionáveis padrões de design e baixa qualidade dos carros e a tendência dominante dos chineses para simplesmente trucidarem os direitos de autor ao copiarem o design de veículos que todos conhecemos no mundo ocidental.

O facto de o fabricante local Landwind ter sido condenado a pagar uma multa e interromper a produção do irmão ilegítimo do Range Rover Evoque provavelmente ajudou a desencorajar essas práticas, ao mesmo tempo que criou um importante precedente na justiça… e nos comportamentos.

Mas eis que os resultados da injeção de know-how ocidental - tanto na engenharia como no estilo – começam a aparecer, como fiquei a perceber depois de uma longa caminhada de cerca de 20.000 passos (segundo a app do meu telemóvel) para cobrir a maioria dos 330.000 m2 dos 10 pavilhões em forma de folhas de trevo do Salão Automóvel de Xangai de 2019, uma das megacidades chinesas com o dobro da população de Portugal inteiro.

Essa fusão ocorreu não só porque os fabricantes de automóveis do mundo ocidental foram forçados a se juntar aos chineses para escapar das tarifas aplicadas sobre os veículos importados – dando azo a que os chineses aprendessem por osmose -, como é também o resultado de uma década de contratação de talentosos designers de todo o mundo que fizeram as malas e rumaram a leste.

À medida que me fui cruzando com executivos de primeira linha ou designers proeminentes durante a visita ao salão fui percebendo que os sorrisos trocistas (que até bem recentemente eram a reacção mais normal às cópias chinesas e padrões de qualidade assustadores da maioria dos veículos) foram substituídos por expressões faciais sérias e manifestações de interesse por parte de europeus, japoneses e americanos, o que quer dizer que a ameaça é real.

Esta evolução positiva no respeito pela propriedade intelectual cruza transversalmente toda a sociedade, como também aumentaram exponencialmente as aptidões organizacionais e a civilidade do cidadão chinês: há hoje muito menos pessoas a empurrar-se umas às outras na rua a cada 10 metros ou a passar à frente nas filas como se quem lá estava não existisse, tornou-se difícil encontrar um papel no chão e o descontrolo frenético e sinfonia de buzinadelas que caracterizavam o pesadelo do trânsito parece ter desaparecido da noite para o dia (fui informado por um autóctone que o governo impôs pesadas multas para erradicar tais condutas… certo, uma democracia musculada… ainda assim notável a mudança).

Após o primeiro declínio de vendas em 28 anos no final do ano passado, o mercado de automóveis chinês está a enfrentar alguns desafios intricados, como as tensões comerciais com os EUA, a desaceleração da economia (ainda com um crescimento do PIB acima de 6% que é pelo menos três vezes superior ao que a Europa consegue nos dias de hoje…) e a redução drástica das subvenções aos veículos elétricos, que será a certidão de óbito de muitas novas start-ups chinesas a atuar neste setor.

Mas, do lado positivo, a redução de impostos decretada por Pequim (3% menos IVA desde o início de abril) para impulsionar os negócios, o clima favorável na negociação com a administração Trump e o incrível aumento geral da qualidade e do design dos carros chineses (bem como a recém-desenvolvida competência técnica em motores elétricos e tecnologia de condução autónoma com fornadas de milhares de engenheiros a saírem das mais qualificadas universidades chinesas nestas duas áreas que definirão muito do que será o automóvel do futuro) abrem caminho para um otimismo justificado.

A par do aumento de credibilidade da indústria e da confirmação do mercado como o mais importante do mundo, a China está igualmente na frente na revolução mais importante nesta indústria desde que o cavalo foi substituído pelo carro há pouco mais de um século.

As vendas de NEV (New Energy Vehicles, ou os elétricos e híbridos assim classificados por Pequim) mais que duplicaram no primeiro trimestre de 2019 para 300.000 (maioritariamente elétricos), o que significa que o recorde de 1,2 milhão do NEV vendidos em 2018 (mais do que no resto do mundo) será amplamente ultrapassado este ano - estimativa de 1,6 milhões - mesmo se o corte dramático nos subsídios arrefeça o entusiasmo do consumidor em abraçar a eletromobilidade.

Nesta corrida (encorajada pela intenção do governo chinês atingir uma quota de elétricos de 20% do mercado até 2025, ou seja, cerca de 7 milhões de veículos a pilhas), dezenas de novos fabricantes foram criados da noite para o dia (hoje existem mais de 120 modelos elétricos na China - mas apenas cinco não domésticos - três vezes mais do que há dois anos). E, em pleno centro de Xangai, são os próprios directores de marcas ocidentais que reconhecem o seu atraso, como se percebe neste comentário desencantado que ouvi da boca de um executivo da VW a caminho da revelação mundial do primeiro automóvel elétrico da marca alemã para aquele mercado: "estamos aqui parados no semáforo no meio de uma multidão de carros elétricos chineses e só agora é que vamos mostrar o nosso primeiro elétrico e ainda como concept-car". Fica tudo dito.