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Mondial demasiado local

Texto: Júlio Santos
Data: 2 de Outubro, 2018

Hoje ao chegar ao Salão de Paris perguntei-me se não estaria a chegar ao fim um ciclo que durou várias décadas. A ausência de duas dezenas das marcas de topo é mais do que um sinal dos tempos

Diz-se que a história não se faz com os ausentes mas a verdade é que a história deste Salão de Paris é mesmo escrita pela ausência de nada menos do que 20 marcas de primeiro plano, naquele que disputava habitualmente o lugar de mais importante salão automóvel à escala planetária. Por mais que custe reconhecer essa é a realidade. Uma realidade que é a confirmação de que as coisas estão mesmo a mudar. Uma realidade que reflete uma nova forma das pessoas se relacionarem com o automóvel e a consequente necessidade dos construtores de seguirem as novas tendência. Uma realidade, acrescente-se, que antecipa um novo contexto para este tipo de megaeventos, como são os salões, sendo possível adivinhar que na Europa apenas Genebra não sofrerá danos de maior, dado por um lado a sua dimensão e, por outro, a sua postura “neutra”.

Foi muito de tudo isto que se tornou evidente no Mondial de Paris: o seu “alinhamento” com os construtores franceses há muito era conhecido, o mesmo acontecendo com aquilo que muitos consideravam o preço “absurdo” de uma presença condigna. Argumentos que, por sua vez, eram também há muito usados pelas marcas francesas em relação ao relacionamento do Salão de Frankfurt com as marcas alemãs. Só para que se tenha uma ideia, números não oficiais dão conta de que o custo total da participação da Mercedes-Benz no Salão de Frankfurt do ano passado rondou os 29 milhões de euros, um valor que, apesar da relevância do mercado alemão, não pode, sequer, ser equacionado pela generalidade das marcas.

A corda esticou ao limite a as fissuras estão à vista, restando apenas saber o que vai acontecer com o Salão de Frankfurt do próximo ano, sendo a este respeito pouco relevante o argumento de que a dependência das marcas francesas face ao mercado alemão é maior do que o peso das vendas em França para os construtores alemães. E dizemos isto porque em Paris as ausências contabilizadas não limitavam, sequer, ao Grupo VW. No rol estava todo o Grupo FCA (exceto a Ferrari), a Ford, a Mitsubishi, a Nissan, a Porsche ou a Opel, cuja dependência face ao mercado alemão é bastante significativa. Daí que perante uma resposta positiva à chamada (ainda assim bastante duvidosa para muitas destas marcas) seja curioso verificar o que pesará mais na decisão dos responsáveis pelos grupos Renault e PSA: o negócio em si mesmo ou a vontade de retaliar pelo facto de o “seu” Mondial” se ter tornado surpreendentemente regional?

Mas a equação não termina aqui. O problema tem, inevitavelmente, a ver com custos ou, se se preferir, com a rentabilidade de investimentos de muitos milhões e a este respeito a resposta terá que ser dada pela presença do público. Só que, aqui chegados, as nuvens são ainda mais densas. Não vale a pena invocar a relação muito menos emocional que o público em geral mantém hoje com o automóvel. Não é, sequer, preciso recordar que praticamente tudo aquilo que é revelado num salão está com muitos dias de antecedência nas páginas das revistas ou nos sites. Como não podemos deixar de levar em conta que há menos de uma década (já na era da Internet, portanto) o número médio de visitas a concessões antes da opção final por um dado modelo rondava as nove e agora não chega a duas. São apenas alguns exemplos de como todas as premissas desta equação se alteraram e do porquê da pressão sobre os investimentos das marcas ser hoje muito maior… sem que os orçamentos tenham “esticado”.

Dito isto, a pergunta é inevitável: que futuro têm os salões?

Pela minha parte, lembro-me de que visitei pela primeira vez o Salão de Paris há nada menos que 38 anos (e marquei presença em todas as edições). Lembro-me do fascínio que senti. Cheguei mesmo a achar que estava a viver um sonho que, aliás, perdurou durante muitos dias; mesmo depois de regressar a Lisboa e encher páginas e páginas com uma reportagem apaixonada. Hoje de manhã pouco depois de entrar no “Mondial” perguntei-me se um jovem profissional de comunicação que ali estivesse pela primeira vez sentiria algo sequer parecido.