Mercedes W 196 R Stromlinienwagen: F1 de rodas “cobertas”

Em 1954 foram construídos quatro Mercedes W 196 R Stromlinienwagen para os circuitos mais rápidos da (então nova) F1. Um deles vai ser leiloado em fevereiro pela RM Sotheby’s e poderá tornar-se num dos automóveis mais valiosos de sempre

A federação internacional revolucionou os regulamentos desportivos para 1954. A F1, criada em 1950 com carros “à antiga”, evoluiu para os motores 2.0 litros e a Ferrari garantiu a hegemonia em 1952 e 1953.

Para aumentar a competitividade, foi feito um “upgrade” tecnológico que cativou a Mercedes para regressar à alta roda do desporto automóvel. A marca de Estugarda mantinha muitos dos seus engenheiros, conservava o “know how” do passado e não escondia a ambição ao avançar com o projeto W196 com base num motor de 3,0 litros de cilindrada, adaptado do bloco V12 utilizado pelos aviões de caça Messerschmitt Bf 109 E da Lufwaffe, durante a II Guerra Mundial.

A federação internacional deu aos construtores um ano para avançarem com os projetos de uma fórmula que (teoricamente) era simples: os motores aspirados não podiam ir além dos 2,5 litros de cilindrada e os sobrealimentados estavam limitados a uns ridículos 750 cc.

A Rennabteilung

A Mercedes aceitou o desafio e criou a Rennabteilung (departamento de corridas), que recebeu todos os recursos disponíveis na empresa de Estugarda. Rudolf Uhlenhaut foi encarregue de supervisionar o desenvolvimento do novo F1.

O chassis tubular do W194 300 SL serviu de base para o projeto W196 que adotou uma suspensão dianteira independente com braços duplos, barras de torção, molas e amortecedores telescópicos hidráulicos. A suspensão traseira de eixo rígido era gerida por um eixo oscilante, desenhado pelo próprio Rudolf Uhlenhaut, que posteriormente surgiu nos 300 SL Roadster.

Volumosos tambores de travão Alfin foram desenvolvidos especificamente e montados de forma a reduzir as massas suspensas.

Oito cilindros

O banco de motores da Mercedes oferecia muitas alternativas. Os V12 poderiam ser apetecíveis, mas os engenheiros optaram por um V8 em linha com 2 494 cc, desenvolvido com base em dois blocos de quatro cilindros com duas arvores de cames, ignição dupla, carter seco e engrenagens por válvulas desmodrómicas, em vez das molas tradicionais, para já não falar na injeção direta de alta pressão, desenvolvida em colaboração com a Bosch. Diz-se que o motor debitava 257 cv de potência, tendo chegado aos 270 cv.

O motor foi colocado tão baixo quanto possível para reduzir o centro de gravidade e acoplado a uma caixa de cinco velocidades, montada na traseira.

Estreia em Reims

O desenvolvimento foi muito rápido, mas a Mercedes partiu com atraso motivado pela criação da nova estrutura e pelo arrojo do projeto. O “Mundial” de 1954 começou e os alemães faltaram à chamada em Buenos Aires, Indianápolis e Spa-Francorchamps. Mas chegaram com pompa e circunstância a Reims, para o Grande Prémio de França, onde os W196 R impressionaram com a sua silhueta, diferente de todos os monolugares da época. Mais baixos e largos, com uma volumosa grelha dianteira e evidentes sinais aerodinâmicos originais para a época, fez tanto sucesso como a apresentação de Juan Manuel Fangio.

Ao fim de dois anos com a Maserati e das vitórias inaugurais da temporada na Argentina e Bélgica, Fangio assumiu o desafio endereçado por Alfred Neubauer (o diretor desportivo da marca alemã) para integrar a equipa da Mercedes.

A estreia do W196 R foi um êxito. Fangio (1º), Kling (2º) e Hermann (7º), a garantir a volta mais rápida, estiveram em foco. É certo que em condições atmosféricas difíceis, Froilán González venceu em Silverstone e ofereceu à Ferrari a sua primeira vitória na F1, mas a Mercedes voltou a assumir o protagonismo em Nurburgring, com uma equipa de quatro carros – três de rodas abertas e o novo Stromlinienwagen.

Rodas cobertas

Os regulamentos da época eram mais do que permissivos. A Mercedes percebeu que nenhuma regra condicionava a forma da carroçaria e os seus engenheiros concluíram que, em circuitos de alta velocidade, uma opção de rodas carenadas poderia ser mais eficaz do que a solução de rodas abertas e trabalharam esta alternativa, criando um monolugar de carroçaria aerodinâmica que mais parecia pensado para as 24 Horas de Le Mans – o W 196 R Stromlinienwagen. A estreia em Nurburgring não evidenciou essa vantagem. Fangio (1º) e Kling (4º) estiveram em foco com o W196 tradicional, que voltou a ser utilizado no GP da Suíça onde a Mercedes e Fangio ganharam de novo.

Mas os alemães voltaram a utilizar o W 196 R Stromlinienwagen em Monza, onde Stirling Moss e o seu Maserati 250 F surpreenderam tudo e todos. Liderou durante 19 voltas e só não ganhou por causa de uma rotura no carter. Fangio venceu com o Stromlinienwagen, que se destacou face ao carro de rodas descobertas de Hans Hermann (4º). O Stromlinienwagen passeou a sua superioridade na prova extra-campeonato realizada em Avus, monopolizando os primeiros lugares com Kling, Fangio e Hermann, para gáudio do público germânico.

O “Mundial” terminou com o GP de Espanha disputado no circuito de Pedralbes (com o seu anel de velocidade), nos arredores de Barcelona. A Mercedes alinhou com três W196 com rodas descobertas. Juan Manuel Fangio voltou a vencer face ao Ferrari de Mike Hawthorn e o Maserati de Harry Schell. O segundo título mundial do argentino foi um êxito para a Mercedes, que impediu a Ferrari de obter o “tri” depois dos títulos de 1952 e 1953.

Chegada de Moss

O W196 R Stromlinienwagen de rodas cobertas ficou conhecido como o “Monza”, devido ao seu objetivo de potenciar a velocidade pura e o chassis 00009/54 acabou por se tornar famoso, apesar de não fazer parte do projeto inicial.

Em 1955 a Mercedes decidiu evoluir o motor que recebeu um novo coletor de admissão, ao mesmo tempo que apostou na aposta de modelos de rodas descobertas. O novo modelo era 70 kg mais leve e a Rennabteilung exigiu à Continental pneus mais performantes para uma equipa reforçada com o britânico Stirling Moss, um piloto cujo nome viria a ficar associado à Mercedes.

Alfred Neubauer, o diretor da equipa, não descurava nenhum detalhe. Era um perfecionista e Stirling Moss foi instruído para as necessidades específicas dos carros que o esperavam. “A sua minúcia e ponderação surpreenderam-me desde início”, recordou mais tarde o piloto britânico. “Era como estar num mundo diferente. Todos os percursos das provas eram analisados matematicamente e o próprio Neubauer marcava e cronometrava as mudanças de velocidade, volta após volta. Os pilotos eram ouvidos e respeitados, o que nem sempre acontece com as equipas de topo”.

EM 1955 O CHASSIS 00097/54 FOI RECUPERADO PARA MONZA. FANGIO CONSIDEROU QUE ERA MAIS EFICAZ DO QUE A SUA EVOLUÇÃO

Juan Manuel Fangio venceu com naturalidade o GP da Argentina, primeira prova da temporada de 1955, e a equipa ficou em Buenos Aires para testes e para alinhar numa corrida de “Fórmula Livre” a 30 de janeiro, onde Fangio estreou o chassis 00009/54 com um “novo” motor “Sport 59” de 3.0 litros montado numa carroçaria de rodas abertas. O objetivo era testar o bloco M196 S que veio a equipar o 300 SLR. O piloto sul-americano dominou a chamada” temporada Argentina”, mas no GP do Mónaco, onde utilizou um novo chassis com menor distância entre-eixos, tudo se alterou. Problemas técnicos para todos os pilotos saldaram-se com o 9º lugar de Fangio numa prova marcada pelos italianos e ganha pelo Ferrari de Maurice Trintignant, que partilhou o pódio com Eugenio Castellotti (Lancia) e Jean Behra (Maserati).

A Mercedes dominou os GP da Bélgica e da Holanda com Fangio e Moss nos dois primeiros lugares, num ano em que várias provas foram anuladas após o terrível acidente nas 24 Horas de Le Mans, onde o embate entre o Austin Healey de Lance Maclin e o Mercedes de Pierre Levegh, que foi projetado para a bancada, matou mais de 80 espetadores.

O campeonato foi retomado em Julho com o GP de Inglaterra corrido em Aintree onde Moss, Fangio, Kling e Taruffi garantiram a única vitória quádrupla da história da Mercedes.

Chassis 00009/54

O circuito de Monza foi reconstruído para 1955 e passou a contar com um anel de velocidade, que parecia à medida do chassis Stromlinienwagen. Nos testes em Agosto para a corrida de Setembro, a Mercedes apostou na opção das rodas cobertas com algumas alterações na dianteira e numa tomada de ar no capot, mas os resultados não foram conclusivos. Mesmo assim foram construídos dois carros em Untertürkheim, mas nos treinos Juan Manuel Fangio percebeu que a nova distância entre eixos condicionava o desempenho e utilizou o carro de reserva com as dimensões de 1954, que mostrou ser mais eficaz. Alfred Neubauer entrou em contacto com a fábrica e exigiu que fosse entregue em Monza – o mais rápido possível – o chassis 00009/54 com uma carroçaria Stromlinienwagen.

Na última corrida do W196, antes de uma longa ausência da Mercedes na F1, a Rennabteilung reuniu oito carros em Monza onde Fangio e Moss alinharam com os Stromlinienwagen, e Kling e Piero Taruffi com as versões de rodas descobertas.

Juan Manuel Fangio garantiu a pole-position à média de 216,216 km/h, batendo Stirling Moss por três décimos de segundo. Na corrida o argentino dominou. O britânico ainda passou pelo comando, mas um problema no pistão do quinto cilindro afastou-o do pódio, o que não o impediu, depois de uma passagem pelas boxes, de garantir com o 00009/54 a volta mais rápida, à média de 215,689 km/h antes de abandonar. Karl Kling desistiu pouco depois do britânico e o W196 R de Piero Taruffi garantiu o segundo lugar com o rodas descobertas, com o Stromlinienwagen de Fangio à vista.

Fim de uma era

O drama de Le Mans foi marcante e ofuscou o sucesso da Mercedes. Fangio garantiu o seu segundo título consecutivo. Moss ajudou a cimentar o mito do W196 e entrou na história com vitórias no Campeonato do Mundo de Sport, onde se destaca o êxito nas 1000 Migla com o 300 SL nº 722, um carro que utilizou um motor de 3.0 litros de cilindrada, evoluído no W196 R.

No final de 1955 a Mercedes tinha nas suas oficinas dez exemplares completos do W196 R, incluindo quatro com a carroçaria Stromlinienwagen. A Rennabteilung construiu 14 chassis designados de 1 a 15 (o 11 nunca foi atribuído). No final de 1955, depois de decidir afastar-se da competição, a Mercedes entregou este espólio ao museu Daimler-Benz, que manteve dez chassis e doou a museus de prestígio quatro unidades, entre as quais o 00009/54.

Destino Indianápolis

Em setembro de 1964, o Mercedes-Benz Club of America visitou a fábrica alemã de Untertürkheim, em Estugarda, e encetou as negociações para a cedência de um Mercedes para o museu que estava a ser planeado para os terrenos do Indianapolis Motor Speedway, que renascia sob a batuta de Tony Hulman, depois da decadência verificada durante a II Guerra Mundial.

Em 1965, como o presidente da Mercedes-Benz, Walter Hitzinger, e o engenheiro-chefe Dr. Nallinger explicaram numa carta de março de 1965 a Hulman, “Tendo em vista o significado especial de Indianápolis na história do automobilismo e também em particular tendo em vista a contribuição de nossa própria empresa, decidimos agora dar-lhe um carro aerodinâmico de 2,5 litros, Tipo W R 196, construído em 1954, como um presente para exposição no seu museu.” O escolhido foi o chassis 00009/54.

Não deixa de ser curioso que Indianápolis faziam parte do Campeonato do Mundo em 1954 e 1955, mas a Mercedes (como os restantes construtores europeus) não se deslocavam aos Estados Unidos. A única ligação entre os alemães e a oval americana passou pela vitória de Ralph De Palma nas 500 Milhas de 1915.

O 00009/54 esteve no museu de Indianapolis. Passeou pelo Amelia Island Concours d’Elegance, Canadian International Auto Show e pelo museu Petersen em Los Angeles e até no recente Pebble Beach Concours d’Elegance de 2024. É um marco da história do automóvel e será leiloado em Fevereiro. Resta saber qual será o seu futuro.