Ferrari 250 GTO: A carrinha do pão

Nasceu graças a um desentendimento entre Enzo Ferrari e o conde veneziano Giovanni Volpi. É um modelo único, que os ingleses apelidaram de “Breadvan”.

No dia 24 de Fevereiro de 1962, na tradicional conferência de imprensa que marcava o início de cada temporada, a Ferrari impressionou tudo e todos com a apresentação daquele que talvez seja o mais icónico modelo da sua história – o 250 GTO. Era o pináculo da evolução dos 250 GT. Foi realizado com base no 250 GT SWB (2400 mm entre-eixos) e com um motor 3.0 V12, num período de mais uma convulsão no seio da Ferrari, uma marca cujo patrão gostava de promover os conflitos, para o bem e (muitas vezes) para o mal da marca.

Ainda no processo de desenvolvimento do 250 GTO, Giotto Bizarrini e vários outros engenheiros foram dispensados pelo Comendador e o projeto foi entregue a um jovem que viria a ser famoso – Mauro Forghieri – e à “Carrozeria Sergio Scaglietti”, que ainda hoje “assina” os níveis de equipamentos especiais pedidos por clientes de Maranello.

O 250 GTO começou a ser desenvolvido em 1960 para responder às alterações que iriam entrar em vigor no Campeonato Mundial de Marcas em 1962. A ideia era potenciar o 250 GT, ganhar peso no chassis tubular e na carroçaria e potenciar o motor 3.0 V12. Os testes começaram com base num protótipo 250 GT SWB (chassis 1791 GT), mas surgiram problemas de lubrificação, que levaram à opção de um carter seco.

No GP de Itália de 1961, Willy Mairesse testou o protótipo e teve a ajuda de Stirling Moss (eram outros tempos...). Os resultados foram brilhantes: “Nunca se tinha visto um GT à frente de um monolugar”, afirmou Enzo Ferrari depois de saber que o convidado britânico tinha cumprido uma volta ao circuito (1961) em 1m 45,4s.

"Guerra Civil"

Enzo Ferrari cultivou sempre os conflitos entre todos. Era assim com os engenheiros, foi assim com os pilotos e com os mecânicos. Considerava-se o “capo dei capi” [chefe dos chefes] à maneira da máfia siciliana. Tinha o poder e criava disputas internas, com o intuito de potenciar os resultados, mas condicionou sempre o trabalho em equipa e em 1961 este “status quo” provocou uma “revolução”.

O projetista Giotto Bizzarrini e o engenheiro Carlo Chiti deixaram a Ferrari para formar a ATS e muitos outros deixaram Modena. O jovem Mauro Forghieri ficou com o 250 GTO nos braços. Evoluiu a mecânica e teve o apoio do “carroçador” Sergio Scaglietti para resolver os problemas de estabilidade, criados por um eixo traseiro “traiçoeiro”, que veio a ser resolvido com a pequena asa posterior aerodinâmica, que ainda não estava presente na versão apresentada em Maranello em fevereiro de 1962 (chassis 3223).

O 250 GT SWB era um ganhador, mas foi claramente batido pelo novo 250 GTO, o que alertou o mundo da competição para o seu potencial. Os regulamentos da Federação Internacional do Automóvel (FIA) exigiam a produção de 100 unidades para a homologação na categoria GT e a Ferrari só produziu 36 exemplares, o que veio a criar uma disputa com a autoridade desportiva, apesar da sigla referir GT “Omologato”. Mas isso já é outra história...

A Ferrari poderia ter fabricado mais do que as 36 unidades produzidas do 250 GTO?... Não era fácil para uma carroçaria em alumínio produzida artesanalmente na Scaglietti e motores construídos em Maranello. Mas era possível, tanto mais que o Comendador só vendia carros a quem queria e impedia a compra àqueles com quem não simpatizava. Era um homem que criava inimigos. Basta recordar o episódio do “fabricante de tratores lá do fim da rua”, como apelidou Ferrucio Lamborghini, quando este criou uma marca para bater a Ferrari, agastado por não ser recebido e ter sido desconsiderado pelo “Capo” de Maranello, quando apenas pretendia apresentar uma sugestão para melhorar o Ferrari 250 GT SWB, que tinha comprado. Revoltado, contratou vários técnicos insatisfeitos pela “revolução” em Maranello e construiu a Lamborghini.

O “Breadvan”

O conde Giovanni Volpi não foi tão longe, mas reagiu com firmeza à recusa de Enzo Ferrari vender dois 250 GTO à “SSS Scuderia Serenissima Republica di Venezia”. As relações tinham-se azedado quando o conde apoiou Giotto Bizzarrini e Carlo Chitti na fundação da ATS (Automobili Turismo e Sport).

Ao ficar privado do novo GTO para a sua equipa, Giovanni Volpi recorreu ao engenheiro Giotto Bizarrini e ao carroçador Piero Drago para realizar o “seu” próprio GTO de competição.

Tal como o GTO original, o “Breadvan” nasceu com base num chassis 250 GT SWB (2819GT). Para Giotto Bizarrini foi como retomar um trabalho inacabado, mas seguiu um caminho diferente (e mais elegante) do adoptado por Forghieri/Scaglietti.

Foi radical nos conceitos aerodinâmicos enunciados por Wunibald Kamm nos anos 30. O alemão já nessa altura defendia que o desenho da carroçaria tinha de oferecer pouca resistência ao ar e o desenho da traseira era fundamental.  Este conceito – que ainda hoje é conhecido como Kamm tail ou K-tail – foi radicalizado no caso do “Breadvan”, que foi equipado com um motor V12 NA  3.0 litros do 250 Testa Rossa ainda mais recuado do que acontecia no GTO, para garantir uma melhor repartição de massas.

O processo foi realizado em tempo recorde e em junho, por altura das 24 Horas de Le Mans de 1962, o “Breadvan” (matrícula MO 6 8939) roubou muito do protagonismo ao novo GTO da Ferrari.

A competitividade do “Breadvan” entregue a Carlo Abate/Colin Davis era evidente e, na longa reta da Hunaudiéres, era mais rápido do que os Ferrari GTO oficiais e ocupava o sétimo lugar absoluto quando foi obrigado a desistir com problemas de transmissão ao fim de quatro horas, num ano em que venceu o 330 TRI de Gendebien/Phil Hill, seguido pelos GTO de Noblet/Guichet e”Eldé”/”Beurlys”.

NAS 24 HORAS DE LE MANS DE 1962 O “BREADVAN” FOI MAIS RÁPIDO DO QUE OS 250 GTO, MAS ABANDONOU COM PROBLEMAS DE TRANSMISSÃO

A SSS utilizou o “Breadvan” em inúmeras provas até 1966, altura em que o modelo foi vendido para os Estados Unidos, onde foi utilizado tanto nas pistas como fora delas, sendo sempre alvo da curiosidade geral onde surgisse. É algo que ainda hoje acontece quando aparece nos meetings reservados a automóveis históricos, mesmo no Festival anual de Goodwood, onde costuma marcar presença em verdadeiras raridades cheias de história.

Quem o conduziu afirma que é um carro fácil de conduzir até às 4500 rpm, mas a partir desse regime o seu temperamento altera-se radicalmente, já que toda a potência dos seus cerca de 300 cv surge repentinamente, sendo difícil de controlar.

Readoção

O tempo passou e as disputas do passado de Enzo Ferrari foram esquecidas pela “Ferrari Classiche” (recupera modelos do passado e certifica a autenticidade de qualquer Ferrari) que atestou o 250 “Breadvan” como um veículo de interesse histórico, “apesar de não estar conforme aos critérios do certificado de autenticidade Ferrari”.

A decisão foi baseada nas exigências quanto “aos resultados desportivos e reconhecimento internacional, sendo um modelo emblemático com a sua configuração”.

A “Ferrari Classiche” recorda que o “Breadvan” saiu da fábrica em 1961, como um 250 SWB, participou no “Tour de France” com Gendebien/Bianchi, antes de ter sido comprado pelo conde Volpi, que o inscreveu nos 1000 km de Paris com Trintignant/Vaccarella.

Hoje, faz parte de uma coleção austríaca e sofreu um violento acidente em 2022 nas 24 Horas de le Mans Classic e não voltou a ser visto desde então.