Gasolina a partir de água e sol: Realidade ou ficção?

Num mundo que se encaminha rapidamente para a revolução eléctrica, o som do motor de combustão interna começa a soar mais como um eco do passado do que como o rugido do futuro.

No entanto, engenheiros suíços desafiaram esta narrativa ao colocarem um Audi Sport quattro de 1985 a circular com aquilo a que chamam «gasolina solar». E, ao contrário do que o nome algo fantasioso possa sugerir, esta inovação está longe de ser ficção científica.

A empresa suíça Synhelion afirma ter desenvolvido uma alternativa à gasolina convencional, neutra em carbono, fabricada a partir de luz solar concentrada, CO2 e água. Esta tecnologia já não existe apenas em laboratório. Em Junho de 2024, a Synhelion inaugurou a DAWN, a primeira central de produção de combustível solar em escala industrial, localizada em Jülich, na Alemanha.

Este combustível pode ser utilizado sem quaisquer modificações nos motores actuais, como foi demonstrado no inicio de julho, quando um Audi Sport quattro de 1985, tornou-se o primeiro veículo da história a funcionar com gasolina solar produzida na fábrica industrial DAWN da Synhelion em Jülich, na Alemanha.

Nenhuma modificação foi feita no motor original de 306 cv do Audi, demonstrando a compatibilidade do combustível sintético renovável da Synhelion com os veículos e a infraestrutura atuais. O ronco do motor clássico, alimentado por energia captada do sol, marca um momento simbólico de transição.

Sol concentrado, calor extremo e química avançada

O processo é engenhosamente simples em teoria, mas sofisticado na prática. Em vez de recorrerem a painéis fotovoltaicos para gerar electricidade, os engenheiros da Synhelion utilizam espelhos controlados por inteligência artificial, denominados heliostatos, que concentram a luz solar numa torre central, onde um receptor proprietário atinge temperaturas superiores a 2.700 °F, mais quentes do que lava derretida. Esse calor extremo alimenta um reactor termoquímico, onde uma mistura de água e materiais biogénicos é transformada num gás de síntese — composto por hidrogénio e monóxido de carbono. Este gás é depois convertido num líquido denominado syncrude, que pode ser refinado em gasolina, gasóleo e combustível para aviação, utilizando infraestruturas existentes.

Uma das grandes vantagens do sistema da Synhelion é a sua capacidade de operar 24 horas por dia, graças a uma tecnologia de armazenamento de energia térmica (TES), que guarda o calor solar durante o dia para ser utilizado à noite. Este sistema é alegadamente dez vezes mais barato do que o armazenamento em baterias convencionais e evita a dependência de metais raros, como o lítio e o cobalto. Enquanto outros projectos de combustíveis sintéticos recorrem maioritariamente à electricidade proveniente da energia eólica ou solar para produzir hidrogénio via electrólise, a Synhelion aposta num processo térmico solar directo — um conceito que poderá ser mais escalável e economicamente viável a longo prazo.

Combustível sintético à prova de altitude

Mas a Synhelion não está sozinha nesta corrida. A Porsche, em colaboração com a empresa HIF Global, tem desenvolvido o seu próprio combustível sintético, conhecido como e-fuel. A diferença está na abordagem tecnológica: enquanto a Synhelion utiliza calor solar direto, a Porsche recorre a energia eólica para produzir hidrogénio por eletrólise, que depois é combinado com CO2 para gerar hidrocarbonetos sintéticos. Este combustível foi usado numa missão audaciosa em 2023, quando um Porsche 911 especialmente adaptado subiu o vulcão Ojos del Salado, no Chile, a mais de 6.700 metros de altitude, alimentado apenas com este e-fuel. O feito serviu como prova de que o combustível pode alimentar veículos de combustão em condições extremas.

O desafio dos custos

Contudo, há uma diferença significativa nos custos. A gasolina solar da Synhelion, ainda em fase piloto, tem um custo estimado entre 0,50 e 1 euro por litro, com previsão de redução para cerca de 0,50 euro por litro em larga escala. Já o e-fuel da Porsche, na sua fase inicial no Chile, custava cerca de 55 dólares por litro — valor extremamente elevado, ainda que a empresa preveja baixar esse custo para cerca de 2 dólares por litro com o arranque de novas instalações industriais, nomeadamente no Texas.

E como se compara com a Zero Petroleum?

Enquanto a Synhelion aposta na energia térmica solar como fonte primária para produzir combustíveis líquidos, a empresa Zero Petroleum, sediada no Reino Unido, adopta uma abordagem mais tradicional aos e-fuels, recorrendo à energia renovável (geralmente eólica ou solar) para alimentar processos de electrólise da água (produção de hidrogénio), seguido da combinação com CO₂ para formar hidrocarbonetos sintéticos.

A Zero Petroleum ganhou notoriedade quando abasteceu um avião com combustível sintético e também uma supercarro num teste bem-sucedido, provando a viabilidade dos seus combustíveis líquidos em cenários exigentes. No entanto, os seus processos são fortemente dependentes de electricidade renovável e infraestruturas de electrólise, o que acarreta custos mais elevados e desafios relacionados com a eficiência energética global do sistema.

Por contraste, a abordagem térmica da Synhelion, ao evitar a conversão de energia solar em electricidade, pode maximizar o aproveitamento directo da energia solar e reduzir os custos energéticos intermédios. Além disso, a capacidade de integração com refinarias existentes posiciona-a como uma solução potencialmente mais prática para substituição da gasolina convencional.

A realidade… por enquanto

Apesar do entusiasmo, tanto a Synhelion como a Zero Petroleum enfrentam obstáculos semelhantes: custo e escala. A central DAWN da Synhelion, por exemplo, ainda é uma instalação piloto e produz apenas alguns milhares de litros por ano — um volume irrelevante face ao consumo global. A empresa já anunciou planos para construir uma unidade de produção em larga escala até 2025, com início de operação previsto para 2027. Ainda assim, para competir com os combustíveis fósseis actuais, será necessário apoio político, como impostos sobre o carbono ou subsídios à produção limpa.

Para muitos entusiastas, os superdesportivos e os clássicos não são apenas veículos — são experiências sensoriais completas, onde o som do motor, a resposta do acelerador e até o cheiro da gasolina desempenham um papel emocional importante. Os combustíveis sintéticos mantêm essa experiência viva, ao mesmo tempo que reduzem drasticamente o impacto ambiental. O desporto motorizado também tem dado sinais de aceitação: a Fórmula 1 planeia usar combustíveis sintéticos a partir de 2026, e a Porsche já os utiliza na sua monomarca Supercup.

Contudo, por enquanto, a gasolina solar está mais próxima de um projeto de ciências do que de uma bomba da Galp. Mas, se algum dia for produzida em larga escala, poderá permitir-nos continuar a ouvir o som dos motores de combustão.