Citroën Traction. A "arrastadeira" faz 90 anos

Revolucionário na arquitetura e na tecnologia, o “Traction” foi o primeiro automóvel a oferecer a tração dianteira e deu origem a 100 novas patentes. Foi produzido entre 1934 e 1957 e em Portugal chamaram-lhe... “arrastadeira”

Em 1934 o mundo estava em convulsão, mas Paris vivia a boémia das noites no “Quartier Latin” que se prolongavam até Montmartre, depois de dias marcados pelos passeios de glamour ao longo dos “boulevards” e dos Campos Elísios. Paris era um ponto de encontro para a cultura europeia, onde viviam Picasso e tantos outros artistas. Era um mundo indiferente à Guerra Civil que abalava Espanha e à crise económico-social anunciada, já marcada pelas violentas manifestações de esquerda dirigidas pelos comunistas franceses. Na Alemanha, Adolf Hitler tinha chegado ao poder e, na China, Mao Tsé-Tung iniciava a grande marcha comunista em direção ao norte. Face a este cenário negro, a boa notícia foi a descoberta da radioatividade artificial por Irène Joliot-Curie.

GRANDE DESAFIO

Foi neste quadro que foi apresentado o Citroën Traction, “tão novo, tão audacioso, tão rico em soluções originais e tão diferente de tudo o que já havia sido feito”, como foi referido na comunicação social da época. Nesses tempos, a tração à frente era um desafio e outros construtores, como os alemães da Adler, já o haviam tentado, mas os grandes motores condicionavam não só o espaço do habitáculo como tudo o resto. Os chassis pesados, algumas estruturas (ainda) em madeira e grandes motores elevavam o peso dos veículos e as suspensões incipientes e direções “diretas” condicionavam a condução.

Na época, o grande desafio de construir um “tração à frente” passou por criar um sistema de transmissão capaz de transmitir a potência do motor às rodas dianteiras, que passaram a ser simultaneamente diretivas e motoras. O desenvolvimento deste projeto passou também por reduzir o centro de gravidade do veículo, a fim de potenciar o comportamento dinâmico. Mas havia mais opções originais para o seu tempo, tão inovadoras como a arquitetura mecânica. A carroçaria (diferente) é um monobloco autoportante, totalmente construída em aço, inspirada pelos Lancia Lambda do passado, que evita o peso do chassis sem condicionar a rigidez estrutural e garante uma redução importante de peso. O projeto tem as assinaturas do engenheiro André Lefèbvre e do estilista Flaminio Bertoni, que já na época dedicou muito tempo ao estudo do aerodinamismo e à repartição de massas, algo de que pouco se falava naqueles tempos.

CITROËN QUERIA MAIS

André Citroën (1878-1935) foi um génio. Criou uma marca de automóveis, inovou, inspirou-se na Ford Motor Co. para trazer para a Europa a produção em série e criou uma política de comunicação que esteve muito à frente do advento do marketing empresarial. Queria sempre mais e melhor e soluções inéditas como a caixa automática que imaginou para o “Traction”, que criou dificuldades que acabaram por levar à opção pela transmissão mecânica. Inovar tanto em tão pouco tempo não foi fácil: os primeiros “Traction” tiveram problemas com os apoios do motor e foi necessário algum tempo para os resolver. Em 1936 (dois anos após o lançamento) houve uma evolução importante com a adoção de amortecedores hidráulicos, que substituíram as barras de torção e a adoção de uma direção de cremalheira.

O último “Traction” saiu da fábrica do Quai de Javel, em Paris, no dia 25 de Julho de 1957. Foram produzidas 759 123 unidades ao longo de 23 anos e quatro meses, um recorde de longevidade no seu tempo. O “Traction” tornou-se num automóvel mítico, abrindo caminho ao futuro da indústria automóvel.

“BERLINE 7”

No ano de 1934, a Citroën vivia abalada pela crise financeira e o governo francês criou as condições para a Michelin entrar na sociedade, num processo de recuperação que implicou a redução de oito mil postos de trabalho. Num país em crise, a marca apenas produzia
51 546 veículos por ano. Era mais do que insuficiente. Mas, apesar desta situação caótica, em abril de 1934 a marca do Quai de Javel, em Paris, espantou o mundo automóvel com a apresentação do Citroën Traction 7, o primeiro modelo de um automóvel revolucionário que se iria manter em produção até 1957, sobrevivendo às agruras da II Guerra Mundial que trouxe bombardeamentos e a ocupação nazi a quase toda a Europa.

O “7” foi apresentado aos concessionários a 21 de março e o primeiro modelo foi entregue a 7 de maio com o seu motor de quatro cilindros em linha (1303 cc) com 32 cv de potência. Tinha acoplada uma caixa de três velocidades com a 2ª e 3ª velocidades sincronizadas. A marca francesa anunciou uma velocidade máxima de 100 km/h.

Um mês depois do lançamento, a Citroën apresentou o 7 S Cabriolet de dois lugares, capaz de atingir os 115 km/h, e anunciou um protótipo cabrio 22 cv (potência fiscal) com um motor de oito cilindros de 3,0 litros de cilindrada, a velocidade a chegar aos 140 km/h e passível de ser declinado em várias carroçarias.

NOVAS APOSTAS

Os tempos conturbados na Europa e as ameaças latentes de um conflito prestes a surgir não condicionaram a criatividade dos engenheiros da marca sediada no Quai de Javel, logo ao lado do rio Sena. E a aposta familiar do “Traction” surgiu em 1935. Chamou-se “11 Familiale”, apesar de ter estado para ser apelidado de limousine, devido às suas caraterísticas. Alongado, tinha três vidros laterais e podia oferecer até nove lugares, apesar de ter terminado com uma configuração de oito lugares (3+3+2). Contava com o motor de 1911 cc e 46 cv de potência. Numa aposta radicalmente diferente, mais virada para o prazer de viver “à grande e à francesa”, foi proposto o “11 L faux cabriolet” em 1937, que foi aprimorado no design para atingir um público alvo mais requintado.

GUERRA IMINENTE

Ainda em 1937, um estudo de mercado realizado pela Citroën mostrou que a marca tinha uma necessidade absoluta de diversificar a sua oferta. Cerca de 90% dos clientes que compravam um automóvel optavam pela aquisição de um modelo em segunda mão, com um preço na casa dos 10 mil francos franceses, menos de metade do preço de um “Traction” 11 cv novo. Por isso, a marca apostou na criação de uma proposta de baixo custo de caráter popular. Foi assim que nasceu a ideia do 2 CV: “quatro rodas sob um chapéu de chuva, um veículo económico capaz de transportar 4 pessoas e 50 kg de bagagem”, como dizia o caderno de encargos.

O projeto foi desenvolvido apesar da ameaça de guerra iminente e, ao mesmo tempo, a Citroën apresentou em Março de 1939 o “Traction” 15 com um motor de seis cilindros com 3.0 litros de cilindrada, capaz de rivalizar com a concorrência da Renault e da Ford. Conforto e estabilidade foram atributos que valeram elogios a um automóvel capaz de atingir os 135 km/h. Custava 36 300 francos, mas em Maio de 1940 a Alemanha invadiu a França e só foram produzidas duas mil unidades.

A fábrica do Quai de Javel foi bombardeada antes dos alemães chegarem a Paris em junho e tomarem conta das unidades industriais. Os responsáveis da Citroën desmontaram e esconderam o projeto do 2 Cv que só viria a ver a luz do dia no final do conflito, mas a fábrica passou a responder ao esforço de guerra nazi. Em 1942 apenas foram produzidos 9319 veículos, numa fábrica que passou a ser bombardeada, desta vez pelos Aliados, na preparação para o Desembarque na Normandia (junho de 1944), numa altura em que a sua produção se centrava nos camiões Type 45 G a gasogénio. A libertação de Paris teve lugar em agosto.

DO TRACTION AO DS

Com um país a recuperar dos traumas e destruição causados pela Guerra, a Citroën regressou a uma atividade tão normal quanto possível. Em 1946 voltou a colocar no mercado o seu “Traction” nas versões 11 B (dita normal), 11 BL e o 15 SIx-G, que no ano seguinte recebeu uma nova caixa de velocidades e uma evolução do motor. Mas na marca todas as atenções estavam centradas na aposta que vinha de trás: o 2 CV, que veio a ser apresentado em 1948 e voltou a ser um ícone tal como tinha acontecido com o “Traction”, que se mantinha no ativo e que em 1949 ainda ocupou um lugar de destaque no espaço da marca francesa no Salão Automóvel de Paris. Foi produzido até 1957, com uma suspensão hidropneumática (1954), que viria a marcar o futuro da marca francesa. A produção da “arrastadeira” manteve-se até 1957, numa altura em que o seu herdeiro já estava no mercado.

O novo modelo – Citroën DS 19 – foi apresentado no Salão Automóvel de Paris em 1955 com grande sucesso. Em apenas três quartos de hora recebeu 749 encomendas e no final do dia estavam vendidas 12 mil unidades. Revolucionário na imagem e no vanguardismo tecnológico, foi um digno sucessor do “Traction”. Foi produzido durante 20 anos, entre 1955 e 24 de abril de 1975.

Foi mais um sucesso da parceria entre o estilista Flaminio Bertoni e o engenheiro André Lefèbvre, e voltou a surpreender pela imagem e pela tecnologia de ponta, vindo a afirmar-se como um automóvel que – mais tarde – vários designers famosos admitiram ter gostado de realizar.

DUPLA DE SUCESSO

Flaminio Bertoni (1902-1964) é um nome (injustamente) esquecido na história do automóvel. Escultor, nascido na cidade italiana de Varese, onde há um museu em sua homenagem que perpetua o seu trabalho inovador, passou ao lado da história do automóvel apesar de todas as inovações na imagem que deixou na Citroën, desde o “Traction” ao 2 CV, do furgão H Van (chapa ondulada) ao Ami 6.

Mas se o italiano é pouco ou nada recordado, o mesmo aconteceu com André Lefèbvre (1894-1964).
Nascido na cidade francesa de Louvres, começou a carreira como engenheiro aeronáutico na empresa “Aéroplanes Voisin” e, ao mesmo tempo, era projetista e piloto de automóveis de competição com algum sucesso.

Deixou o mundo dos aviões e teve uma passagem fugaz pela Renault, antes de chegar à Citroën (1933) onde lhe ofereceram aquilo que ele pretendia: um gabinete de estudos para expressar a sua criatividade com projetos como o “Traction”, que havia sido recusado por Louis Renault.

O caráter visionário de André Citroën e o arrojo tecnológico de André Lefèbvre encaixaram na perfeição e o engenheiro veio a assumir a liderança do gabinete de novos projetos que estão na origem do “eterno” 2 CV e do mítico “DS”. Uma doença que lhe imobilizou o lado direito obrigou-o a deixar a Citroën em 1957, mas continuou a dar as suas opiniões e começou a desenhar com a mão esquerda, o que fez até à sua morte em 1964.