Arno Timossi XI: 70 anos do Ferrari que voa nas águas

O motor com que a Ferrari venceu a sua primeira corrida de Fórmula 1 também fez sucesso em provas de motonáutica, tendo estabelecido em 1953 um recorde de velocidade que ainda hoje perdura

O nome Ferrari remete-nos para o melhor do design italiano sobre rodas e é sinónimo de elevadas performances e sucessos desportivos. A história da marca começa por ser a história de Enzo Ferrari, o piloto que se tornou diretor desportivo da Alfa Romeo e fundou uma marca com o seu nome depois da II Guerra Mundial.

A competição foi sempre a paixão de Enzo e, para poder pagar as corridas da sua Scuderia, decidiu produzir automóveis numa fábrica que foi crescendo em Maranello no pós-Guerra. O sucesso foi rápido. Surgiram clientes abastados e se o primeiro modelo da Ferrari surgiu em 1947, em 1951 a Scuderia ganhou o GP de Inglaterra de F1, no segundo ano do Campeonato do Mundo da especialidade.

Para Enzo Ferrari esse dia mereceu uma referência muito especial na sua autobiografia “Mes joies Terribles”, editada em 1963: “Quando em 1951 [Froilán] González se impôs ao volante de um Ferrari pela primeira vez na história dos nossos confrontos diretos face aos [Alfa Romeo] 159 – derivados do 158 – e a toda a equipa da Alfa Romeo, caíram-me lágrimas de alegria, misturadas com lágrimas de tristeza, porque pensei imediatamente: matei a minha mãe”.

Apesar do tom dramático do senhor de Maranello, ninguém tem dúvidas de que esta vitória foi aquilo que Enzo Ferrari procurou desde que se separou da Alfa Romeo para seguir o seu próprio caminho.

“Certamente não terá chorado lágrimas de tristeza por ter derrotado a Alfa Romeo”, afirmou Gino Rancati, um dos seus mais conhecidos biógrafos. “Tenho tendência para acreditar que Ferrari celebrou esse momento inolvidável, cantando como Otello [ópera de Giuseppe Verdi] – Acredito num Deus cruel, que me criou à sua imagem”. Enzo era um apreciador de ópera...

Quebrar a hegemonia da Alfa Romeo era o grande objetivo da Scuderia Ferrari para a temporada de 1951, que nem sequer começou bem. Mas em Silverstone, face aos Alfa Romeo de Fangio, Farina, Sanesi e Bonetto, surgiram os Ferrari de Ascari, Villoresi e González. Para adensar a expetativa, nos treinos, Fangio e González realizaram o mesmo tempo, seguidos de Farina e Ascari. Em pista o duelo entre os dois argentinos foi empolgante. O talento de Fangio não se destacou da determinação de González e Villoresi adotou a postura mais razoável: esperar para ver o desenlace do duelo que se travava à sua frente. Froilán González acabou por vencer com 51 segundos de vantagem sobre Fangio e Villoresi arrecadou o último lugar do pódio.

Tempos de afirmação

O GP de Inglaterra de 1951 passou a ser um marco na história da Ferrari. Foi a primeira vitória da Scuderia. O primeiro êxito da única equipa que está presente na F1 desde o seu início em 1950. Foi o primeiro de 242 triunfos em 1052 corridas de F1, disputadas pela Scuderia até Fevereiro de 2023, e isso tem peso...

Nesse tempo, Enzo Ferrari já tinha uma voz ativa na discussão sobre a alteração de regulamentos e a Scuderia foi beneficiada com a adoção dos motores de 2.0 litros, que ajudaram a afirmar a sua superioridade e vencer o campeonato em 1952 com Alberto Ascari, que reafirmou no ano seguinte a hegemonia da equipa italiana.

O sucesso da Scuderia era evidente, mas Enzo ainda era ambicioso e a sua marca apenas contava com meia dúzia de anos de atividade. Era fundamental potenciar a notoriedade para conquistar mais clientes. Talvez por isso, o senhor de Maranello aceitou o desafio que lhe foi lançado por Achille Castoldi, um engenheiro apaixonado pela motonáutica, que pretendia construir um “hidroplano” capaz de planar sobre a água, mantendo apenas a hélice e o leme imersos, o que exigia um motor super-potente.

O projeto foi desenvolvido com base num casco desenhado pelo Cantiere Timossi de Azano (região do Lago Como) e contou com um motor V12 de 4,5 litros, derivado do bloco que equipava o 375 F1 de Froilán González em Silverstone, que estava disponível pela alteração das regras do jogo na F1.

O bloco recebeu um duplo compressor volumétrico que permitiu elevar a sua potência de 350 cv (na versão da Fórmula 1) para 502 cv, garantindo a Achille Castoldi vários sucessos, entre os quais se destaca o recorde de 241,7 km/h num quilómetro lançado. Esta marca, que ainda hoje não foi superada na “categoria de 800 kg”, foi estabelecida no Lago Iseo (entre Bergamo e Brescia) no dia 15 de outubro de 1953.

Eram tempos perigosos para o mundo automóvel e o mesmo acontecia nas competições aquáticas. A perda de alguns amigos vítimas de acidentes levou Achille Castoldi a afastar-se da modalidade e o Arno Timossi XI caiu no esquecimento.

Renascimento em 1960

Surpreendentemente, em 1960 o barco reapareceu com Nando Dell’ Orto, um engenheiro que reformulou o casco de madeira, reforçando-o com alumínio, que passou a contar com uma tomada de ar frontal que mais parece a boca de um tubarão. A Ferrari reviu o motor, alterou o sistema de escape e conseguiu elevar a potência para 550 cv, para dar luta à então rival Maserati, que tinha desenvolvido o motor do 450S para uma versão náutica, com 520 cv de potência.

As alterações no Arno Timossi XI aumentaram o seu peso, pelo que transitou para a classe dos 900 kg, sendo curioso destacar que o número 4 a que Achille Castoldi tinha sido fiel ao longo da sua carreira desportiva passou para o número 50, que identifica o período em que o barco foi conduzido por Nando Dell’ Orto nas conquistas do título europeu da sua classe em 1963 e o segundo posto em 1965.

Com o passar dos anos a competitividade foi desaparecendo e o Arno Timossi XI voltou a ser encostado ao cais e acabou por voltar a cair no esquecimento, mas sobreviveu graças ao interesse histórico de uma peça única. Foi recuperado no início dos anos 90 e o casco foi totalmente restaurado, o mesmo acontecendo com o motor, que foi reconstruído pela própria Ferrari.

O barco retomou o seu antigo esplendor e realizou testes no Lago Iseo, mostrando que continuava a ser capaz de voar sobre as águas.

Este teste foi uma operação de marketing, destinada a reafirmar a imagem de um projeto que o tempo tinha votado ao esquecimento. O lucro de uma projetada venda era o principal objetivo, mas os valores anunciados não tiveram a correspondência esperada no leilão que decorreu em Monte Carlo, em 2012. O Arno Timossi XI chegou ao certame anunciado como uma peça de valor inestimável, mas acabou por ser arrematado por 868 mil euros, um valor muito aquém das expetativas.

Como é habitual nestas ocasiões, o comprador foi alguém que deu pelo nome de “anónimo”. Mas foi um bom negócio. O Arno Timossi XI voltou a ser revisto no departamento de restauro histórico da Ferrari, teve palco no museu da marca italiana e voltou a trocar de mãos em 2020 onde, noutro leilão, foi vendido por 1,43 milhões de euros a outro “anónimo”. Agora, basta esperar por cenas dos próximos episódios da saga Arno Timossi XI, o herdeiro do motor V12 projetado por Aurelio Lampredi, que conquistou a primeira vitória da Ferrari na F1. Só aquele V12 é uma peça histórica de enorme valor...