ALTA-FIDELIDADE

Texto: Ricardo Machado / Fotografia: José Bispo
Data: 2 de Julho, 2017

Pode não ter a riqueza sonora ou de caráter de um seis cilindros, mas o novo motor boxer de quatro cilindros do Porsche 718 Boxster não deve nada ao antecessor. Pelo contrário. Anda mais e gasta menos. O resto é música.

Em 1982, a Philips revolucionou a indústria discográfica com o lançamento comercial do Compact Disk. Apesar do sucesso imediato, não faltaram críticas. O som era demasiado cristalino, impessoal, o mundo não era tão nítido. De repente, a “batata frita” do vinil – os estalidos provocados pela agulha a percorrer o sulco gravado no disco – era sinónimo de caráter. Atualmente, passa-se um fenómeno parecido com o 718 Boxster. Ao trocar um motor boxer atmosférico de seis cilindros por outro de quatro cilindros sobrealimentado, a Porsche cometeu uma heresia.

Não interessa se com “apenas” dois litros, quatro cilindros, um turbo de geometria fixa e 300 CV o 718 Boxster seja mais rápido e gaste menos que o antigo Boxster S com motor 3.4 de 315 CV. Faltam-lhe dois cilindros! Encarada por muitos como uma grotesca amputação, a nova arquitetura tem sido acusada de falta de caráter. Um motor sem a progressividade ou o brilhantismo dos seis cilindros nas derradeiras 1500 rpm antes do red line e a sonoridade de um Subaru. Disparate! Apesar de entregar os 380 Nm do binário entre as 1950 rpm e as 4500 rpm, regime a partir do qual os 280 Nm do Boxster se mantinham em pleno até às 6500 rpm, o 718 Boxster mantém a pujança até perto das 7500 rpm. Bem orquestradas pelas válvulas do escape desportivo, as explosões dos quatro cilindros não deixam ninguém indiferente.

Não é a mesma coisa. Um sexteto será sempre diferente de um quarteto e o trabalhar do 718 Boxster não é tão fácil de identificar de olhos fechados como o do Boxster. É diferente. Provavelmente não passa de uma questão de tempo até entrar no ouvido e o preconceito ser ultrapassado. Como a arquitetura base não foi alterada, apesar de por fora manter apenas os capots e a capota do Boxster, o resto, aquilo que pode ser medido com um cronómetro, não deixa espaço para dúvidas. Quatro segundos e meio no arranque até aos 100 km/h. Retira dois segundos ao tempo do Boxster e 0,8 segundos ao tempo do Boxster S. Na verdade, consegue mesmo baixar dos 4,7 segundos que constam na ficha técnica. Despacha o primeiro quilómetro em 23,5 segundos e recupera dos 40 para os 90 km/h em 2,7 segundos. Melhor? Só os dois segundos do 911 Turbo para a mesma recuperação de velocidade.

O BOXSTER DE SEMPRE

Por baixo da carroçaria agressiva e estilizada, trocou-se a elegância intemporal do 986 original por maior eficácia aerodinâmica, encontra-se a mecânica da terceira e atual geração. Não parece, mas o 718 Boxster, assim denominado pela Porsche que quer números a identificar os desportivos, não passa de um restyling do Boxster. Boas notícias. Trata-se de equipar um chassis ágil e equilibrado com um motor mais eficiente.

Mais binário, disponível mais cedo, significa maior vivacidade nos regimes médios. Se fosse um diesel esgotava-se perto das 4500 rpm. Como é um Porsche a gasolina, mantém o fôlego até perto das 7500 rpm. Trabalhar no limite do red line elimina o ligeiríssimo atraso do turbo, ao mesmo tempo que expõe a fraqueza do escape. O 718 Boxster desafina nas notas mais altas e não há escape desportivo (2324€) que lhe valha. Sonoro e encorpado no arranque torna-se estridente com o acumular de rotação, regime onde o sopro do turbo se ouve com maior nitidez.

Se uma parte substancial do virtuosismo do 718 Boxster se deve ao equilíbrio e solidez da construção, outra não menos importante encontra-se dispersa pela lista de opcionais. Este tem tantos extras que, dos 67 936€ base, o preço dispara para os 100 279€. Excessivo. Para nós chegava a caixa PDK (2921€), a direção assistida Plus (270€), a suspensão ativa PASM com redução da altura em 10 mm (1476€), as jantes de 20’’ (2583€), a vectorização do binário PTV (1353€) e o volante desportivo GT (283€) para, em conjunto com o pacote Sport Chrono (2152€), ter o comando rotativo para os modos de condução.

 

PRECISÃO CIRÚRGICA

Com a direção 10% mais direta, molas e amortecedores mais firmes, barras estabilizadoras revistas e jantes traseiras mais largas, não duvidamos de que a versão base do 718 Boxster seja eficaz. Apesar de nunca termos conduzido uma… No entanto, as sete opções atrás referidas realçam o brilhantismo do roadster.

Potenciada pelo baixo centro de gravidade e pela correta distribuição do peso entre os dois eixos, a estabilidade direcional mantém-se imperturbável. Como uma agulha a percorrer o sulco de um disco de vinil, o 718 Boxster segue as coordenadas do volante com uma facilidade desconcertante. Basta apontar e deixar o reforço de binário nos regimes médios atuar. A urgência da resposta ao acelerador nos primeiros dois terços da escala do taquímetro transforma-se em precisão cirúrgica no último terço.

Mantendo os Pirelli PZero 265/35 ZR20 no ponto, o eixo traseiro reage sempre de forma muito progressiva. E liberal. A antecipação do planalto do binário para baixo das 2000 rpm levou a Porsche a criar um inédito nível Sport para o controlo de estabilidade PSM. É agora possível dar ordem de soltura à traseira sem prescindir da supervisão eletrónica. Para assinar as curvas com fumo e uma dose mais carregada de borracha, é preciso desligar a eletrónica por completo.

Reduzindo a taxa de compressão dos 12,5:1 para os 9,5:1, recurso necessário para estender a progressividade do motor para além do planalto do binário, os travões e a direção são mais solicitados para as pequenas correções que normalmente se fazem com o alívio do acelerador. Reflexos intuitivos num roadster que se movimenta como um todo e que, apesar da facilidade com que se deixa provocar, dificilmente se vira ao condutor. Apesar da maior solicitação, os travões de série não se ressentem das estradas de serra.

 

SPORT RESPONSE

Cortesia do pacote de equipamento Sport Chrono, o comando rotativo para os modos de condução estreado no último 911 chega ao 718 Boxster. Se os quatro modos predefinidos não trazem nada de novo, a função Sport Response é música para os nossos ouvidos. Um toque no botão central e o 718 Boxster entra em modo de ataque total. A caixa PDK mantém o regime acima das 5000 rpm, trocando apenas às 7500 rpm, enquanto o turbo mantém a pressão máxima, para uma resposta mais imediata. O efeito dura apenas 20 segundos, mas não tem limite de utilização.

Marcando a separação entre os dois lugares, ao centro do tablier, o novo módulo de comando do entretenimento, PCM, resume as alterações ao interior. O resto é Boxster. Até a capota é a mesma, com a facilidade de poder ser aberta em movimento até aos 50 km/h. Não sendo perfeito, o isolamento aerodinâmico do habitáculo é suficiente para fazer uma chamada telefónica com o sistema mãos livres a 120 km/h sem ser necessário gritar com o interlocutor. Minimizado pela ação do amortecimento adaptativo, o efeito da redução de 10 mm na altura ao solo não se reflete negativamente no conforto.

(Passar para 'ao detalhe')

No fundo, o mesmo Boxster de sempre, só que com um motor melhor. Um motor que troca o caráter exclusivo dos seis cilindros atmosféricos, pelo pragmatismo dos quatro cilindros sobrealimentados. Anda mais, gasta menos e tem um coeficiente de diversão idêntico. Está na altura de esquecer a “batata frita” e aceitar o CD. Até porque, se o futuro for tão elétrico como muitos vaticinam, arriscamo-nos a chorar pela alta-fidelidade do CD enquanto somos forçados a escutar um MP3 de baixa qualidade…

 

Artigo originalmente publicado na Revista Turbo nº 421, de outubro de 2016